Domingo. 20 horas.
Aqueles dias cinzentos e molhados que nos fazem ficar por casa acompanhados por filmes ridículos, mantas, carinho e essas merdas que elas acham românticas e eles aguentam mesmo sem futebol na televisão.
Começa o Telejornal e as notícias vão aparecendo mantendo-nos em contacto com o mundo lá fora. Por entre a austeridade e as inconstâncias internacionais. Ali ao lado ela vai lendo uma revista que revela as tendências de um inverno que se aproxima, são castanhos, amarelos e golas mais ou menos altas a condizer com botas de canos mais ou menos altos. Há atentados mortíferos no Afeganistão, crianças refugiadas às portas de uma Síria devastada e corridas aos contentores do lixo à porta das grandes superfícies; mas há também novos avanços na cura do cancro, prémios lieterários surpreendentes, ciclos de cinema imperdíveis. Ali ao lado ela vai lendo uma revista que revela as festas de sociedade que encerram o verão onde tudo combina com tudo, entre o bronzeado forçado, o rosé do champanhe e o loiro de madeixas demoradas e carregadas. A espaços, logo depois da página virada, o braço estica-se em minha direcção e a mão afaga a minha coxa, mostrando-se presente ainda que ausente.
As notícias vão surgindo a um ritmo vertiginoso sem cadência nos assuntos. E é chegada a altura do apresentador iniciar uma macabra descoberta: o filho exemplar matou a mãe com várias facadas, numa localidade até agora desconhecida mas agora em alvoroço. Houve sangue, muito sangue, lágrimas, gritos de revolta, um advogado assertivo e um bombeiro narrador de inconfidências.
Ela pousa a revista, levanta os olhos em direcção ao ecrã, reforça a atenção à linha temporal do sucedido e absorve os pormenores.Nesse momento, já eu lhe tinha roubado a revista e actualizado a lista do meu guarda-roupa que precisava de ser reciclado.
- Já viste isto? O gajo devia levar com a pena de morte. - comenta indignada.
Era desconcertante . O mundo "pula e avança", como cantava o Manuel Freire, e a única coisa que a fez largar as páginas cor de rosa foi um crime de vão de escada.
Nesse momento, não haveria manta, comédia romântica ou crepitar de lareira que reacendesse o calor do momento e a noite fria e escura dificilmente seria suavizada com lençóis ondulantes. A pintura estava borrada e a resposta tornou-se inevitável:
- Vou indo, está na hora, já é um pouco tarde...
Sem comentários:
Enviar um comentário